segunda-feira, 21 de maio de 2012


...e os bichos pequenos iam se acalmando na medida em que lia Blanchot.






Princípio-ar





O tempo é capaz de um truque mais estranho. Certo incidente insignificante, que ocorreu em dado momento, outrora, esquecido, e não apenas esquecido, despercebido, eis que o curso do tempo o traz de volta, e não como uma lembrança, mas como um fato real¹!, que acontece de novo, num novo momento do tempo. Assim o passo que tropeça nas pedras mal niveladas do pátio dos Guermantes é de repente - nada é mais súbito - o mesmo passo, não "um duplo, um eco de uma sensação passada ... mas essa própria sensação". Incidente ínfimo, perturbador, que rasga a trama do tempo e por esse rasgão nos introduz em outro mundo: fora do tempo, diz Proust com precipitação. Sim, afirme ele, o tempo esta abolido, já que, numa captura real, fugidia mas irrefutável, agarro o instante de Veneza e o Instante de Guermantes, não um passado e um presente, mas uma mesma presença que faz coincidir, numa simultaneidade sensível, momentos incompatíveis, separados por  todo o curso da duração. Eis portanto o tempo apagado pelo próprio tempo; eis a morte, essa morte que é obra do tempo, suspensa, neutralizada tomada vã e inofensiva. Que instante! Um momento "liberto da ordem do tempo", e que recria em mim "um homem liberto da ordem do tempo".
 Mas logo, por uma contradição que ele mal percebe, de tão necessária e fecunda, Proust diz, quase por descuido, que esse minuto fora do tempo lhe permitiu "obter, isolar, imobilizar da duração de um raio - o que ela nunca apreende: um pouco de tempo em estado puro". Porque essa inversão? Por que aquilo que esta fora do tempo põe a seu dispor o tempo puro? É que, por essa simultaneidade que fez juntarem-se realmente o passo de Veneza e o passo de Guermantes, o então do passado e o aqui do presente, como dois agoras levados a se sobrepor, pela conjunção desses dois presentes que abolem o tempo, Proust teve também a experiência incomparável, única, da estase do tempo. Viver a abolição do tempo, viver esse movimento, rápido como um "raio", pelo qual dois instantes, infimamente separados, vêm (pouco a pouco, embora imediatamente) ao encontro um do outro, unido-se como duas presenças que, pela metamorfose do desejo, se identificassem, é percorre toda a realidade do tempo e, percorrendo-a, experimentar o tempo como espaço e lugar vazio, isto é livre dos acontecimentos que geralmente o preenchem. Tempo puro, sem acontecimentos, vacância móvel, distância agitada, espaço interior em devir onde as estases do tempo se dispõem numa simultaneidade fascinante, o que é tudo isso, afinal? É o próprio tempo da narrativa, o tempo que não esta fora do tempo, mas que se experimenta como um exterior, sob a forma de um espaço, esse espaço imaginário onde a arte encontra e dispõe seus recursos.
1. Trata-se, naturalmente, para Proust e na linguagem de Proust , de um fato psicológico, de uma sensação, como ele diz.